terça-feira, 13 de abril de 2010

Bateu uma crise de consciência forte por ter deixado isso aqui de lado. Queria muito ter tempo pra escrever, queria até criatividade para tal também. Mas enfim... Como não disponho de nenhum dos dois no momento, quero compartilhar com vocês uma carta enviada por Caio Fernando Abreu à sua amiga Jacqueline Cantore. Na carta, eles falam do suicídio de Ana Cristina César (Ana C.) grande amiga de ambos. Interessante a forma como retratam do assunto, de uma forma que pode vir a parecer fria, mas que não é o caso. Afirmo com convicção, tendo em vista que no mesmo livro (Cartas, do gênero correspondência, publicado em 2000 [se a memória não me falha]) anos depois ele ainda é indignado com o acontecido. Quando descobre que é soro positivo continua lembrando de Ana. E até escreve o texto "Sem Ana, sem blues", logo depois da morte dela (também publicado neste blog, hihihi). Então, eis a carta. Espero que gostem.

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Porto, 1° de novembro de 1983.


M’r’len,
ótimo receber tua(s) carta(s) hoje de manhã. Não sei se tenho muito o que dizer, também estou ainda em estado de choque. A gente não podia imaginar que Ana realmente conseguisse
[1]. Ou podia? Primeiro chorei e senti medo e pena. Deu vontade de deitar, dormir três meses. Aí reagi, tomei banho, fiz a barba, botei uma roupa bem limpinha e fui assistir ao último dia do Leiteiro. Que foi lindo. A casa cheia e a platéia aplaudindo em pé no final. Clélia (que melhorou incrivelmente) empacou no final e repetia, com cara de louca: “Eles vêm nos matar porque nós sobrevivemos ao fim do mundo.” O tempo todo eu sentia que, se tivesse algo a dizer (ainda) para Ana C., estava tudo naquele texto. Uma choradeira coletiva nos camarins depois.

E então sair com I. — tão lindo, mais lindo ainda —, tomar um vinho, depois vir dormir. E não conseguir: na minha cabeça, Ana C. parada à beira de uma janela. Pensamentos mórbidos: o que ela teria sentido um segundo antes de se jogar no espaço. Depois do choque, certa raiva. Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver — a literatura —, coisa que pouca gente tem. Pedi a Deus que não permitisse que ela ficasse muito tempo no limbo onde ficam os suicidas. Terá ouvido? Deus não andará com aquela surdez provocada pela poluição sonora?

Tudo muito horrível. Uma entrevista com Maria da Conceição Tavares na IstoÉ mais uma matéria no Jornal Nacional sobre os efeitos de uma possível (e provável) guerra nuclear (uma espessa capa de fuligem cobriria o planeta, ficaria noite durante muitos anos — Leiteiro perde) me deixaram mais apavorado.
Ai olho para I. ou fico horas com Rodrigo no colo — e a vida existe e também é bonita. E se renova. Tem lados de luz.

Rodrigo: me pareceu extremamente familiar, Odeia barulho, muita gente — é eu superquietinho. No dia que cheguei, levaram ele no médico e está com um problema relativamente grave, mas comum em bebês, um hérnia escrotal. Um dos testículos não desce, coisa assim. Vai precisar fazer cirurgia, mas é rápido. Só que Cláudia chorou horrores. Nair ficou supernervosa. Eu com meus botões pensava, não podia dar outra. Ascendente Scorpio e ainda por cima Saturno começando a fazer a conjunção do Ascendente (que é 11º 20’). Mas tá tudo bem.

S’as que a cidade tá linda. Tem uns ipês roxos roxos roxos derrubando as flores, então ruas inteiras atapetadas de roxo. Sexta e sábado foram dias lindos, claríssimos, céu e sol luminosos. Como alegria de efeito estufa dura pouco, domingo começou a chover torrentes e só tá parando agora.

Gracias pelas duas críticas (?) ao Triângulo. Cá entre nós: achei inteiramente, mas bota inteiramente nisso, idiotas. A da Bella Josef (o nome é fantastish...) é um amontoado de adjetivos. A outra nota diz mais ou menos assim porra-todo-mundo-diz-que-é-bom-pra-caralho-então-eu-vou-dizer-olha-é-bom-mesmo-mas-também-não-TANTO-assim. Haja. Fiquei lendo a matéria da Ana C. na Folha. E dá uma dor. Lembra daquele cara pixando ela acho que no JT, chamando de British virgin? Agora porque matou-se, ficou perfeita. [À margem: Horrível saber que a crise dela começou com o abaixo-assinado das famílias na vila da Gávea[2]. Aliás, Kleiton e Kledir dançaram em Salvador.] Que país, que cabeças. [...] Estou ficando cada vez mais cruel. E quero DISTÂNCIA. Umas culpas atravessam. Tivesse sido mais pacientes quem sabe? Horrível confirmação: a décima terceira voz, que eu não compreendia direito — é que foi escrita praticamente toda para Ana — agora faz todo sentido do mundo. Fica claríssima.[3]

Ontem, com uma puta chuva, nos tocamos eu e I. para os autógrafos de Tania Jamardo na Feira. Pasme: ela simplesmente NÃO FOI. No que fez muito bem, também acho.

Eu por aqui, não sei direito de mim. Pausa, compasso de espera:
a casa, para voltar, quando? Me sinto bem aqui. Tem I. Não dá para explicar. Alguma coisa em mim alivia, fica inteira, fica calma. Além de lindo, ele é leve, leal, e está ao lado. Eu tenho certeza absoluta que ele está do lado. Não há esforço. Tudo bem simples. O Jary também tá ótimo. Gorda
[4] faz questão que eu te mande este jornalzinho de Canoas e diz para prestares atenção na concordância da chamada de capa para a entrevista dela. Denise Liége em crise. Fiquei observando. Beira às vezes Ana C. Crise 50% teatral — mas perigosa, de repente você perde o pé e de tanto fingir que está profundamente infeliz, acaba não sabendo mais separar o palco da realidade. E aí a gente sabe o que acontece, não?

Adorei o recado da Patricia Dumont — vou escrever para ela. Mas não sei se mando aos cuidados do Edgar, para a joalheria ou se tento descolar o endereço daquela amiga com quem ela está morando — me parece que é uma quitinete em Copacabana ali pela Barata Ribeiro. Se souberes, me informa.

Encontrei Marquinho Franchetti!, que perguntou por ti. Estão ensaiando o García Márquez e — grande notícia — Lulu Martini volta aos palcos! Estou marcando aqui enquanto I. foi cortar o cabelo no Scalp, depois nos encontramos no Cinema São João para ver Superman III, depois temos um convite para jantar com Graça Numes e Clélia Admar. I. queria saber se precisava usar aquele Comander número 46. Eu fui da opinião que não: além da redundância, os pés não caberiam sob a mesa. Mesmo assim, acho prudente ir de botas.

Diz a Cacaia que fique bem calminha. Tá tudo bem, já passou. Fico preocupado com GM. Mas afinal, se nascemos neste tempo exato, devemos ter aprontado boas noutra encarnação. E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrario: vamos ficar ótimos e incomodar bastante ainda. Cuide-se bem, você.

Encontrei na Feira um livro chamado Entrevero de causos — queres que te mande? Ah: a Faixa Sanitária é um FATO. Fica com Deus, um beijo do

Caio F.

PS - Nana Caymmi foi VAIADA aqui. Um lugar chamado Star Club, na Assis Brasil. Tudo muito triste.

PS - Tem coisas boas: viste que o Sergião[5] ganhou os dois prêmios de Brasília (popular & erudito)? Mais o roteiro. E Tizuka NÃO levou!



[1] Refere-se ao suicídio de Ana C., ocorrido em 29 de outubro de 1983.

[2] Esta história é mencionada em meu livro sobre Ana C.: Ana Cristina Cesar — O sangue de uma poeta (Ed. Relume Dumará, 1996), capitulo final.

[3] Refere-se à narrativa “Dodecaedro”, integrante do livro Triângulo das águas, em que há um jogo dramático de 12 vozes mais uma, esta 13ª entremeada ao longo da história. Segundo nos informa Jacqueline Cantore, a narrativa origina-se de uma forte experiência de terapia de grupo vivida por Caio num retiro de fim de semana prolongado no ano de 1981.

[4] A atriz gaúcha Eliane Steinmetz

[5] Trata-se do documentário média-metragem Mato eles? de Sérgio Bianchi, o cineasta radicado em São Paulo com quem Caio viria a dividir apartamento e para quem escreveria o roteiro do longa Romance, lançado em 1988.

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