domingo, 24 de janeiro de 2010

Nem todo dia ela faz tudo sempre igual



" Tudo bem... até pode ser que os dragões sejam moinhos de vento
  
Já era tarde quando ela acordou e tomou um susto quando olhou para o relógio. Calculou mentalmente quantas horas havia dormido, uma quinze, pensou. Já era quase noite. Tinha sede e uma estranha enxaqueca, seus olhos ainda ardiam. O corpo estava dormente e ela se sentia um tanto que desnorteada.
Levantou-se, foi ao banheiro, olhou seu rosto no espelho. Olhos completamente pretos, esqueceu de tirar a maquiagem ou talvez até lembrou, mas não quis perder tempo com futilidades. Estava cheia de problemas e não se esquecia disso um só segundo.
Beirando um colapso nervoso, lavou o rosto, escovou os dentes e saiu em direção à cozinha. Enquanto preparava um café forte, fumou três cigarros, um seguido do outro. Queria beber, mas não tinha mais nada em casa. Ela precisaria sair e comprar alguma coisa. Antes de tudo resolveu dar uma ajeitada na casa, a bagunça estava enorme, seria praticamente impossível até encontrar alguma coisa no meio daquilo tudo.
Sentia-se culpada, irracional. Sabia exatamente o quanto estava fazendo mal a si mesma, mas era “por amor às causas perdidas”, ela não podia mudar muita coisa. Talvez nem quisesse mudar muita coisa. Tudo parecia tão difícil, tão escuro. Tão inútil. Tinha medo. Uma de suas únicas certezas era essa: tinha medo. Suas opções eram muito restritas e cheia de conseqüências.
Perdida em devaneios, acabou esquecendo-se do café, viu que não dava mais para ficar ali, deixou a bagunça de lado, deixou o café de lado. Tomou um banho, vestiu-se, colocou todo o dinheiro que havia encontrado dentro da bolsa e saiu. Mas saiu sem rumo, daquele jeito que a gente sai quando quer só fugir do mundo, quando quer só sair mesmo, sem precisar encontrar ninguém, sem precisar falar com ninguém. Mais por uma estranha obrigação do que por vontade.
Levava consigo um caderninho e um lápis na bolsa, não sabia exatamente o porquê, mas achou que talvez precisasse. Comprou uma garrafa de vodka e andou, andou, andou. Suas pernas já começavam a doer quando ela avistou de longe aquela velha lagoa, aquela lagoa quase abandonada onde só iam três tipos de pessoas: As que estavam tão tristes que resolviam se jogar na água, com a certeza de que praticamente não haveria possibilidades de serem encontradas; As que estavam tão tristes e solitárias que buscariam algumas das putas tristes que por ali trabalhavam para lhes fazer companhia; e as tão tristes e sem perspectiva que resolveriam se entregar ao mundo da prostituição.
Não sabia exatamente o motivo, mas sentiu uma vontade muito forte de sentar à margem daquele arsenal de Tudo O Que Não Presta. Assim o fez. Sentou e chorou. Pensou no seu emprego maravilhoso que tanto havia lutado para conseguir e agora perdera e chorou. Lembrou de sua infância, onde as coisas pareciam tão mais fáceis e chorou. Agora vinha-lhe também à memória seu apartamento bagunçado, seu descaso consigo mesma, suas noites angustiantes e solitárias naquele lugar e chorou ainda mais. Por último, quando achou que já era hora de levantar-se e voltar para casa, antes que ficasse tarde demais e ela fosse assaltada (sim, tinha complexo com assaltos), ela pensou nele.
Quando ela pensou nele tudo piorou. Ela sentia que tudo que ainda podia estar certo, na verdade não estava. Lembrou do dia em que o viu pela primeira vez e de como haviam sido perfeitos todos os dias ao lado dele, no tempo onde as coisas conspiravam a favor dela, no tempo onde ela era ainda tão jovem que acreditava ter uma vida inteira pela frente, no tempo onde ela tinha um emprego ótimo, uma família a apoiando, onde ela tinha amigos. Onde ela o tinha. Tudo era tão diferente, tão estranho. Nunca esqueceria a noite em que ele morreu. Desde aí as coisas começaram a mudar. Ela não tinha mais dias perfeitos, as coisas não conspiravam mais a seu favor, ela não era mais tão jovem, nem tinha uma vida inteira pela frente; perdeu o emprego por chegar muitas vezes embriagada ao trabalho e agora se tornava cada vez mais difícil encontrar um trabalho digno dela, tão inteligente que ela era, tão bonita que ela já foi um dia; seus pais haviam falecido e não tinha mais amigos.
Pior de tudo: não tinha mais ele. Ele que fazia dela uma pessoa completa e feliz, sem ele ficou tão difícil. Estava em casa quando o telefone tocou e perguntaram se ela era a esposa dele, “sim, eu sou”. Não, ela não é mais. “Sim, eu fui.” Ela se sentia culpada até hoje. Ele havia se matado. Ela nunca chegou a ver seu corpo depois do acontecido, nunca rezou por sua alma depois disso tudo, não foi uma mísera vez ao cemitério. Ele se jogou em uma lagoa assim como essa que estava à frente dela agora, a felicidade e euforia dela não a deixara perceber que as coisas para ele não era tão lindas quanto para ela. Ele era só. Ela nunca percebeu. Só agora reparou o quanto foi culpada da morte dele. Ele não se matou, ela o matou.
Ela e sua vida perfeita e sua presunção e sua falta de humildade e seu costume de achar que porque com ela está tudo bem com ele estaria tudo bem “Dizem que quando se ama um fica feliz quando outro está feliz ele devia estar feliz por ela estar feliz” Ele tinha inveja dela era o que ela achava eles chegaram a brigar por isso várias vezes e ela sempre saia por cima ele sempre se calava ele sempre aceitava tudo que ela impunha e ele não agüentava mais chegou um momento que não dava mais não dava mais não mais não. Ele não estava mais ali. Agora ela era sozinha, agora era ela que não tinha ninguém que perguntasse se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa.
Levantou-se. Olhou no relógio, o tempo voara. Já era quase uma da madrugada. “Vou ser assaltada”, pensou. Pouca luz ali, poucos postes. “Eu sou só uma mulher solitária de quarenta e cinco anos com pouco dinheiro no bolso e com uma garrafa fechada de vodka na bolsa, completamente infeliz e perdida. Ninguém vai me assaltar. Ninguém vai querer nada de mim.”
Foi quando ela sentiu perto de si uma presença, uns passos, como se alguém estivesse se aproximando. Sentiu um forte arrepio e seu sangue correndo mais forte pelo corpo. Ela se virou. Não estava sozinha. Havia um homem ali, ele estava com uma camisa branca e uma jaqueta por cima, ela sentiu um frio muito forte. Mas sabia que ela não ia fazer-lhe o mal, podia sentir que não. Ele se aproximou e a entregou um desenho que ele mesmo fizera. Dois olhos grandes e assustados, em meio a uma face feminina, mas um tanto que sombria. Uma nota escrita um pouco abaixo do rosto: “look deep in my eyes and you’ll see how lost I am.”
Ela repetiu essa frase mentalmente umas cem vezes por segundo. Depois ergueu a cabeça novamente, fitou-o por um longo espaço de tempo, enquanto continuava repetindo a frase. Quebrando o silêncio que se firmara entre os dois, ele disse: “obrigada pelo caderno e caneta, eu os coloquei de volta na sua bolsa. Mas cuidado, moça. Não deixe suas coisas tão soltas por aí. Pra ser bem sincero, tive a ousadia de também tomar um pouco da sua vodka, me desculpe. Já estou indo”.
Ela continuava o fitando em silêncio, até que ele se virou e foi embora. Apenas quando não o tinha mais em vista ela conseguiu falar, gritou enumeras vezes: “espere, espere”. “Quem é você?”, ela pensou ter dito. Não tinha certeza mais de nada, só do medo. O medo continuava sendo sua única convicção.
Quando viu que não mais adiantava correr, gritar, ou fazer o que quer que fosse para ver aquele rapaz de pele clara, camisa branca e jaqueta preta, novamente,p egou então a vodka e tomou a grandes goles. Sentia-se tonta e podia imaginar que estaria trôpega ao levantar-se. Olhou o desenho mais uma vez. Escreveu em sua própria pele com a caneta: “look deep in my eyes and you’ll see how lost I am” e pode imaginar que escreveu no caderno, no chão e em qualquer lugar que fosse. Mas antes de tudo aquilo estaria escrito em sua mente, em sua face.
Ela olhou para a lagoa, a água tão poluída. Tentou ver seu reflexo e mesmo com toda a escuridão e todo o lixo ali, pode claramente ver que o rosto que via naquela água suja era o seu, era o desenho, era exatamente igual ao rosto do desenho. Não tinha mais certeza do que fazia, do que via, do que imaginava. Não sabia mais distinguir os pensamentos das ações.
Subitamente, sentiu uma forte vontade de entrar ali dentro e foi entrando. Cada vez mais foi entrando. Não sentia direito o que fazia, mas agora não tinha mais medo. Sua certeza agora era outra, sua certeza é que seria bom para ela entrar ali. Queria mais vodka, não tinha. “Look deep in my eyes and you’ll see how lost I am” pela última vez. E nunca mais ela teve que voltar para seu apartamento bagunçado, para suas memórias felizes da infância, para o tempo onde tudo em sua vida parecia perfeita, para ele. Para a culpa. Os dragões eram moinhos de vento e foi tudo por amor às causas perdidas.
“Aquela lagoa quase abandonada onde só iam três tipos de pessoas: e um desses tipos era o das que estavam tão tristes que resolviam se jogar na água, com a certeza de que praticamente não haveria possibilidades de serem encontradas.”


Tudo bem... seja o que for, seja por amor às causas perdidas.” 

Um comentário:

  1. "...As que estavam tão tristes que resolviam se jogar na água, com a certeza de que praticamente não haveria possibilidades de serem encontradas; As que estavam tão tristes e solitárias que buscariam algumas das putas tristes que por ali trabalhavam para lhes fazer companhia; e as tão tristes e sem perspectiva que resolveriam se entregar ao mundo da prostituição."

    ...sim, almas gêmeas existem.

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