domingo, 18 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte II)
Coroa
Ontem foi o funeral de Alana e hoje eu acordei como se faltasse uma parte de mim. Tento evitar pensar em tudo que aconteceu nos últimos dois dias, mas não consigo.
Ainda me culpo. Se eu tivesse chegado meia hora antes, talvez ela agora estivesse aqui, sorrindo para mim e dizendo que eu não a deixasse. Alana não era normal, eu sabia disso e ela também. Qualquer um que a olhasse saberia, mas ninguém seria capaz de imaginar o quanto que aquela diferença fazia dela violenta e quem sabe até perigosa. Eu tentei ajudá-la. Mas ela não se permitiu ajudar e sempre foi tão mais forte que eu.
Ela era borderline. Um transtorno de personalidade grave que por muito tempo foi confundido com bipolaridade. Mas ia além. Alana tinha, além de depressão e transtorno bipolar, depersonalização e transtorno de personalidade limítrofe. Sentia uma necessidade absurda de possuir algo que a protegesse e que esse algo não a deixasse nunca. Acho que o objeto escolhido por ela fui eu, e eu a deixei. Mesmo que por minutos, eu a deixei.
Naquela quinta-feira eu a tinha ligado mais cedo para que nós saíssemos à noite. Ela parecia normal, estava saindo o trabalho, disse. Eu já tinha saído do meu e resolvi passar no psiquiatra da Alana para que nós pudéssemos conversar. Ele disse que havia terminado as análises, que os exames dela tinham chegado e que precisava conversar comigo. Eu fui.
“O quadro dela está se agravando, Victor. Ela precisa de você.”
“Posso conversar com ela sobre isso?”
“Deve.”
O médico me disse que ela estava sujeita a surtos de pânico e que era um alvo fácil a cometer um suicídio não intencional, e foi o que aconteceu. Alana nunca teve a intenção de morrer, por mais que de uma forma esquisita e um tanto quanto única: ela amava a vida.
Sempre reclamava muito de solidão, do vazio. Queria que eu ficasse com ela o tempo inteiro, mas eu não podia. Eu tinha obrigações, deveres, ela também. Mas ela não ligava. Achava que tudo já estava tão ruim de um modo que não podia piorar.
Eu passei o dia inteiro preocupado, comecei a telefoná-la, mas ela não me atendia. Então preferi esperar o horário que havíamos combinado de sair. Eu havia perguntado se ela queria que eu passasse para buscá-la, mas ela disse que não precisava, que seria sem necessidade e que a gente se encontrava no café. Ela não foi.
Tudo que o médico me disse não me saia da cabeça, comecei a ficar tão nervoso. Ligava freneticamente para o seu celular e ela não me atendia. Depois de um tempo, não mais agüentei a ansiedade e sua ausência, fui até seu apartamento.
Ao chegar a seu andar já pude ouvir um som ligado altíssimo numa música qualquer de uma melodia triste. Nada incomum, pensei. A não ser o volume exagerado. Tentei tirar tudo que passava em minha mente e acreditar que ela estarei bem ali e que talvez só não escutasse o telefone chamar.
Chamei muitas vezes antes que ela viesse abrir a porta. Eu já estava desesperado e pensei seriamente em quebrar a porta. Tive medo de machucá-la. Quando ela abriu para mim, eu vi que talvez já fosse tarde demais. Senti meu sangue fugir do corpo quando vi Alana, minha amiga, meu amor, parte de mim daquela forma. Eu a amava. Eu ainda a amo. Mesmo depois de morta. Um sentimento de culpa tão forte invadiu meu corpo, deixaria meu sangue secar para ter chegado à sua casa mais cedo.
Alana sorria muito, mas tinha o rosto tomado por lágrimas. O médico me avisou que esse tipo de crises violentas seriam comuns e, como eu já sabia, ela se mutilava sempre que se sentia impura por algum motivo. Geralmente eram cortes pequenos e discretos, não dessa vez.
Nunca sairá da minha mente aquele corpo branco, naquele apartamento branco, coberto de sangue. Completamente ensangüentado. Soa ambíguo, mas assim é para ser. Tanto o corpo quanto o apartamento. Seus cabelos negros caídos sobre o colo branco, vermelho. Não sei mais ao certo dizer se seu colo era branco ou vermelho.
Naquele momento senti uma vontade imensa de protegê-la, de livrá-la de tudo aquilo que ela criou, de tudo que se tornou. Alana era sensível, tanto que foi capaz de fazer o que fez contra si. Não havia muito o que fazer.
Eu a abracei, ao passo em que ela caiu em meus braços, sem forças. Tive medo de machucá-la ainda mais, quis dizer que a amava. Gritei. Gritei. Chorei. Gritei de novo. Implorei que ela não me deixasse, mas foi em vão. Na madrugada de ontem, sexta-feira, na maca de um hospital, após perder uma quantidade absurda de sangue, pouco mais das duas horas, Alana me deixou. E dessa vez foi pra sempre.
Vai ser difícil aprender a conviver com a dor. Tornei-me escravo da culpa de sua morte para sempre. Minha menina estranha e perfeita dentro dos seus defeitos, agora não mais é minha. Eu perdi Alana. Eu me perdi. Eu perdi minha metade que saiu às ruas e acabou entrando na avenida errada. Perdi o amor da minha vida. E joguei no lixo toda e qualquer oportunidade que eu tinha de ser feliz.
Pus em cima do seu caixão rosas vermelhas e brancas. Tão vermelhas quanto o sangue que eu vi sobre o corpo nu e branco antes de sua morte. E tão brancas quanto sua pele hoje, ali, sem vida, sozinha, naquele cemitério.

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