terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pequenas Epifanias

"Miudinhas,
quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia."
(Caio Fernando Abreu) 


Primeiro veio a chuva. Eu estava sentada num banquinho da praça central quando começou, mas não me movi um só centímetro. Tinha saído do trabalho mais cedo naquele dia, ou melhor, naquela semana quase inteira. Minha cabeça estava superlotada de problemas, não bem problemas, mas idéias tortas, brutas, precisando de tempo e dedicação para lapidar e transformar em algo saudável. Conversei com Joseph, o meu chefe, pra repor as horas perdidas depois, expliquei por alto que precisava de um tempo pra mim e ele não discutiu. Então é onde eu volto para o início da questão: primeiro a chuva. Não, primeiro pegar a bolsa, sair da empresa, caminhar algumas ruas, olhando vitrines sem observar o que havia por trás delas, olhando pessoas sem o interesse ou atenção necessária para se imaginar o que haveria por trás dos seus sorrisos tortos e do encontro dos seus sapatos com o chão. Foi então que entrei na primeira livraria que me surgiu pelo caminho e procurei um livrete de auto-ajuda qualquer, para tentar ao menos clarear o vendaval de pensamentos que assolava meu cérebro. Mais uma vez volto ao início: agora, não primeiro, mas segundo, terceiro, quarto, sei lá... a seqüência dos fatos não importa: a chuva. Eu tinha parado naquele banquinho da praça com o intuito de dar uma folheada na minha mais nova aquisição material e tão logo sentei a chuva chegou. Então eu apenas continuei ali, quietinha. Coloquei o livrinho dentro da bolsa e fiquei sentada, sentindo a chuva cair no meu rosto e ensopar o meu suéter. Confesso que eu não havia reparado que o céu estava nublado antes, há tanto eu não parava para observar o céu, nem a lua, nem Vênus, nada. Cruzei as pernas, levantei o rosto e fiquei sentindo a água, como se ela fosse adentrar em meu corpo e quem sabe me dar um banho por dentro, levando de mim toda essa sujeira, pondo ordem em toda essa bagunça e levando nas ondas desse mar tudo que não mais me servia. E eu sorri. Continuei naquela chuva por muito tempo, e não me peça para definir o que é “muito”, pois eu sinceramente não tenho idéia de quantos minutos passei ali. Talvez pelo fato de eu ter aproveitado cada segundo e depositado todo o interesse e atenção que eu não dei às pessoas que passaram na rua à cada gota de chuva que caia sobre mim. E foi bom. E eu me senti tão mais leve, tão mais limpa. Abri os olhos e contemplei aquele cenário magnífico que se dispunha à minha frente naquele momento: a chuva, as folhas das árvores balançando, aquele barulho agradável, algumas pessoas passando rapidamente com seus guarda-chuvas, outras também passando rapidamente sem seus guarda-chuvas e ainda outras me olhando estranho como quem questionava o que eu estava fazendo ali. Eu tive vontade de sorrir para elas, mas não o fiz. Continuei calada, pensando e observando e achando que aquela talvez fosse a primeira epifania da minha vida. Foi então que ele veio, na verdade não veio, apenas passou como tantos outros. Mas um amor de outras vidas nunca passa por acaso, e eu poderia o reconhecer mesmo se estivesse vendada. Eu virei para poder olhá-lo melhor e dessa vez eu sorri. Ele sorriu de volta, sem jeito, e continuou andando.
- Hey!
- Eu?
- É.
Então ele veio. E trouxe consigo todas as certezas que me faltavam. Continuei sorrindo e ele sorrindo de volta, mas ainda sem jeito. Théo tirou os óculos e os segurou fora do rosto de forma engraçada, acho que sem saber ao certo de qual forma enxergaria mais nitidamente, e ao fazer isso eu me deparei com o par de olhos mais lindos e marcantes que eu vi durante toda a minha vida. Não dissemos nada um ao outro, apenas ficamos calados e foi como se o nosso silêncio e aquela chuva justificassem tudo que havia ali. Ficamos parados, imóveis, olhando a água cair, vez em quando um olhando o outro e desviando o olhar ao notar que o outro percebia, como duas crianças. Ele sorriu, dessa vez não sem jeito, e eu notei que era com ele que eu queria passar o resto dos meus dias. Contudo, não, eu não acredito em amor à primeira vista. Só que não foi à primeira vista, entende? Eu já o conhecia, ele também já me conhecia. Porém só numa tarde chuvosa como a de hoje o destino tratou de fazer nos encontrarmos. Talvez por algum motivo especial que eu desconheça, mas que tenha transformado esse encontro em algo único, mágico. Théo se levantou e perguntou:
- Você vem?
- Para onde?
- Não sei. E então, você vem?
Eu não precisei falar nada. Abri a bolsa, peguei meu livrete e deixei sob o banco. Levantei também e segurei na mão dele. E foi nesse momento que aconteceu a segunda epifania da minha vida. Saímos de mãos-dadas, sem rumo certo, sem saber ao menos de onde o outro veio, o que fazia, o que queria... Mas por que se preocupar com de onde o outro veio, o que fazia, o que queria se as pessoas são tão mutáveis e se o passado sempre fica para trás? Não importava. Nós só queríamos o presente, e o meu presente é tê-lo agora dormindo ao meu lado desde aquela tarde chuvosa. Olho pela janela e a chuva cai lá fora. Senti meu coração apertar e esta foi a terceira epifania da minha vida. Volto no tempo e penso se todas aquelas pessoas que passaram ao meu lado naquele dia tiveram a minha sorte e também encontraram o amor das suas vidas. Todavia um amor pra toda vida é coisa rara, principalmente quando é assim, quase à primeira vista. Ele acordou e acabou de me ver com cara de boba olhando pra chuva, colocou os óculos e beijou meu rosto. São em momentos como estes de agora que eu consigo “lavar” a minha mente de todo e qualquer pensamento não-lapidado e me encher de coisas boas, de um bem estar transbordante. Levanto dessa cama e Théo me pega pela mão.
- Vem cá comigo.
- Pra onde?
- Você vem?
- Pra onde?
- Não sei. Você vem?
Apenas sorri e ele me sorriu de volta, me levou pro meio da chuva, tirou os óculos agora ensopados da mesma forma como fez naquele dia e me beijou como se fosse a primeira vez. Aquela foi a quarta epifania da minha vida, mas aquele foi o primeiro, último e único homem no mundo que fez com que eu me sentisse como criança e sorrisse sem jeito mesmo depois de tanto tempo.
- E então, você vem?
- Vou.

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