terça-feira, 20 de março de 2012

E?

Estava certo. Talvez não tão certo quanto ela queria que estivesse, entender os outros é uma questão que ia além da sua capacidade. Nem sei se o seu desejo era entender, de fato. Vai além, também. Consultou o relógio da sala antes de sair de casa com a sensação de vazio. Apressadamente desceu os degraus e passou sem dar "boa noite" ao porteiro. Passos rápidos. Mente a mil por hora. Precisava sair para que ao ver outras pessoas pudesse desfocar daquela que não saia um segundo sequer do seu pensamento. E não tinha motivos para se sentir daquele jeito. E não tinha sentido achar que podia pensar naquilo tudo. Nem dá para se culpar: passar o telefone errado sempre foi a sua maior característica. Não é culpa de ninguém, é ela. É que não dá pra saber se o outro vai ligar e se ela passar o número certo, ela vai esperar a ligação, e por mais que depois passe, vai passar pelo menos uma semana vivendo em função da chamada não recebida, que o outro acabou esquecendo de fazer e esquecendo dela e esquecendo de tudo que ela não esqueceria. Então, como se estivesse posto num código de normas comportamentais que criou para sofrer menos, ela se estabelecia essa regra: nunca passar o telefone correto para o moço na primeira noite. Era meio que um desafio também, uma prova de resistência, saber se ele iria procurar descobrir o número, descobri-la, mesmo com o telefone errado, às vezes até com o nome falso. Mas era instigante. E solitário. Porque ainda assim  esperava a chamada no dia seguinte. E a dele, esperou, bem precisamente, por nove dias. Seus olhos claros e seu toque quente não saíram da sua cabeça e ela se amaldiçoou por possuir um costume tão cruel e se abençoou por possuir um costume tão sensato. Se tivesse passado o certo e ele não tivesse ligado, teria sido pior. E se ele tivesse telefonado e alguma outra moça atendeu na linha e ele perguntou por Luísa e quem atendeu foi Beatriz e ela não conhecia nenhuma Luísa, mas eles poderiam se conhecer. Sentia ciúmes. Sentia ausência e vontade de estar perto e de se permitir estar perto e tantos outros es. E não aguentava mais. E andou, até suas pernas começarem a doer e ela perceber que estava quase correndo. E parou, num café não tão longe da sua casa, o que a fez perceber que ela andou muito, mas em círculos, típico. Entrou, sentou na mesa do canto, com a iluminação mais fraca, um pouco distante do balcão. E o garçom foi até ela e ela desejou que ele fizesse qualquer coisa além de anotar o seu pedido. Pediu uma vodka e não tinha. Se rendeu ao velho expresso, grande e sem açúcar. E tirou da bolsa uma caneta e ficou riscando num guardanapo palavras soltas, sem nenhum sentido. Por uma fração de tempo, desejou ter cursado psicologia ou qualquer outra coisa que indicasse que aquelas palavras estavam ligadas ao subconsciente dela e então teriam algum sentido. 
- Fracasso. Dúvida. Insensatez. Frio. Calor. Boca. Pele. Estudos. Guimarães Rosa. Proximidade. Dor. Contato. Você. Ele. 
Eis o conjunto de palavras escritas, umas vertical, outras horizontalmente. Umas maiores que outras. Então Luísa, que não se chamava Luísa, conseguiu perceber que não precisava ter nenhum estudo na matéria para compreender que todas aquelas palavras não vinham do seu subconsciente, mas do consciente mais consciente de todos. Todas remetiam ao moço. E o café chegou e ela nem reparou, só deu por conta depois que o garçom perguntou se estava tudo bem. Não falou nada, só sorriu para ele, ele adivinhara seu desejo anterior com um pouco de atraso. Tomou o café a grandes goles e queimou levemente a língua no primeiro contato, o que a fez levar os dedos até os lábios e lembrou que a última pessoa que havia feito aquilo em sua frente havia sido o rapaz da ligação. Amaldiçoou o destino por ter feito dela tão covarde e dele tão pouco persistente. Continuou sentada por um tempo que sequer saberia mensurar, notou que era hora de ir quando viu os dois rapazes encostados no balcão encarando a tevê com cara de cansaço. Levantou-se, pagou e foi embora. Ficaria magoada se soubesse que estou lhes dizendo, mas chorou um pouco no caminho de volta pra casa. Fez o trajeto oposto. Andou um pouco mais, até suas pernas voltarem a doer e ela se render e pegar um táxi no caminho de volta e sentir seu intuito de "andar para desopilar" ser traído. O taxista parou duas quadras antes do prédio em que ela morava. Tinha calos, Luísa. Eram tantos. Culpava o passado até quando este não tinha e menor relação com o presente. E sentiu uma fraqueza tão forte que desceu e ficou ali, sentada no meio fio, torcendo para aquela sensação de impotência passar. Também não passou. Também não o tirou da cabeça. Mas estava tudo certo, estava tudo bem. Pela primeira vez na vida, as coisas pareciam estar no lugar, não tanto quanto deveriam, mas ainda assim. O telefone tocou e de sobressalto ela mexeu a bolsa com uma velocidade ímpar, era sua mãe. Ela rejeitou a ligação e chorou um tanto mais. Era sempre assim, importava pra ela. Importava tanto que o outro nem imaginava o mal que a tinha feito. E foi pra casa esperando que ele estivesse na porta a esperando e com um sorriso no rosto ao lhe chamar de malandra, ele a havia descoberto. Quando chegou, não havia ninguém na porta, nem nenhum sorriso, nem nenhum adjetivo, nada. Então abriu a fechadura e acendeu a luz, tudo como ela havia deixado, organizado e solitário, como se um ser vivo nunca tivesse passado por ali. Atirou-se na cama e sentiu como se a cama nunca tivesse sido tão grande. E fechou os olhos e pensou que nunca se sentiu tão cheia de espaços vagos. E ficou ali, revirando na cama, como que querendo que seu corpo tocasse em cada vazio daquele colchão. E ficou ali, revirando a mente, como que querendo que a lembrança do rapaz tocasse cada espaço vazio dentro dela. O telefonema nunca chegou.

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