terça-feira, 5 de março de 2013

Das metas abortadas


Suicídio. Indubitavelmente, foi a primeira coisa que passou pela cabeça de Caio quando sua menina chegou em casa com a convicção de aquele não era o seu lugar. A ideia se deu unicamente porque ele não se julgava capaz de viver sozinho, ou sem ela. Não estava certo. E por não se achar no direito de agir sob impulso numa situação como essa, tampouco por se achar capaz de tomar qualquer decisão sensata, Caio fez o que de melhor sabia fazer: estabeleceu prazos.
Uma visão imensamente fria para alguém alheio à situação, mas eu posso assegurar-lhe que acompanhei tudo de perto e vi que frieza passou longe do que o rapaz viveu naquele final de ano. Um mês. Sua vida agora dependia de encontrar algo que o desse motivos pra continuar vivendo, em um mês. Era o prazo ideal, nem demais, nem de menos.
Foi quando começou sua contagem regressiva. Nos primeiros dias, percebi que ele se arrependeu de não de ter se imposto apenas uma semana. Caio girava na cama a noite inteira, soluçava, vez ou outra. E não era por ela, sabe? De certo modo, era um choro egoísta. Era por ele. Era por ter se vinculado a alguém de modo que não encontrasse outro sentido. Era por lembrar que antes não havia um sentido, mas também não havia uma dor tão latente.
Sentia-se perdido. Tudo parecia um recomeço. Morar seis anos com alguém e de repente não ter mais aquele alguém ali pode ser assustador. Completamente: do café da manhã à hora de desligar a tv antes de dormir. E com quem comentar a tv. Ou a quem pedir pra apagar a luz. Ou pra quem ligar do trabalho avisando que vai chegar mais tarde. Ou a quem surpreender chegando do trabalho mais cedo. Era como se agora ele começasse uma vida nova, completamente independente de tudo que viveu anteriormente.
E tinha essa dificuldade em fechar ciclos. E em caber em ciclos, de amizades, principalmente. O rapaz era peculiarmente sozinho. Ainda que quando a tinha parecesse ser dela, nunca o foi, totalmente. Não por falta de vontade, ou entrega. Nunca faltou amor. Nunca sentiu falta de nada que ela pudesse proporcionar. Era perfeita, só não conseguiu encarar tudo da mesma forma que ele. Por essa incapacidade de amá-lo na mesma intensidade, agora eram só ele, o cinzeiro cheio e as xícaras sujas na pia.
Passada a primeira semana, ainda não havia um motivo, mas a dor se abrandara. Não me interpretem mal, não parou de doer. Doía muito, algumas vezes até mais que nos primeiros dias, só que de vez em quando parecia haver anestesiado, de algum modo. De algum modo ele se achava capaz de suportar o carma. De algum modo ficou claro de que ele só precisava de si, embora fosse melhor quando houvesse ela.
Então saiu às ruas na segunda semana, sua aparência não estava tão ruim. Ele levou duas meninas para casa, simultaneamente. Não supriu o que ele precisava e esperava que suprisse. Jogar-se numa vida de libidinagem não seria a saída, lição número dois.
Na terceira semana, a convicção de que era a sua última de vida já havia batido à porta. Não por uma questão de enlouquecimento, mas de prazos. Caio então decidiu fazer tudo da melhor forma que pudesse. Assistiu aos filmes que há tanto queria e sempre procrastinava, leu dois livros de García Márquez que sempre mantinha na sua cabeceira, saiu na maioria das noites. Sozinho mesmo. Voltando cedo. Só pra comer e tomar um whisky, nada demais.
De repente já eram seus últimos dias e sua tristeza continuava. Agora, uma tristeza diferente. Mais um lamentar que um desespero. Caio ainda não tinha algo pra viver ou morrer por.
Seu último dia seria justamente o 31 de dezembro. Ele acordou mais tarde que o habitual, não intencionalmente. Ao acordar, já sabia o que fazer. Levantou e molhou o rosto calmamente, tomou um banho demorado. Vestiu-se com sua camisa favorita e foi almoçar num restaurante perto de casa, nada demais, o que sempre almoçava aos sábados. Ao voltar pra casa, ainda convicto do que faria, revirou seu guarda-roupas e pôs uma nova roupa de cama, mudou a cortina também.
À tarde, passou os canais da TV sem pressa. Um dos canais o chamou a atenção por estar passando um seriado que ele costumava assistir com a moça. Logo o devaneio passou e ele reestabeleceu sua calma.
À noite, perfumou-se e saiu. Desta vez, ligou pra um colega e os dois foram juntos tomar umas doses, nada de muito interessante.
À meia-noite estava em casa. Sentou na cama e constatou que o dia inteiro esteve certo: tudo estava normal. Tudo sempre esteve. A questão de não ver sentido nas coisas nunca foi motivo pra não querer viver outrora, agora também não o seria. Não iria maquiar nada. Não iria morrer agora. Desde o começo do dia eu percebi que Caio não precisaria de mim ali, que esse mês que passamos ao lado um do outro não seria um encontro de fato. Um dia, mais à frente, eu voltaria por ele. Agora, deixa o rapaz continuar sua vida e sua busca incessante por um motivo.
Quem sabe, na próxima vez que nos vermos, ele me veja com outros olhos e perceba que eu não sou uma saída de emergência, mas sim uma consequência da vida.
Com ou sem razões, deixa Caio viver. 

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