terça-feira, 3 de novembro de 2009

Aviso prévio

- Alô? (...) Olha, amor, eu sei que você está aí, então me atende, por favor. Tenho tanta coisa pra contar, tanta coisa pra saber... Tem sido tão difícil para mim depois que você foi embora. Sabe que até aquele filho seu, que eu tirei, eu senti falta essa semana? Só agora eu reparei que não devia ter abortado, aquela criança serviria ao menos de lembrança de você, ou até mesmo de companhia pra mim agora! Eu te mandei algumas cartas nesses últimos meses, todas voltaram pra mim, e só depois eu percebi que o endereço de destinatário que eu havia posto era o meu próprio, como se você morasse aqui. De fato, mora. Mora aqui, sim. E eu fico só esperando o momento em que você vai entrar pela porta dos fundos, com a chave que você deixa escondida debaixo do tapete da entrada, sem precisar nem me chamar; e eu, então, vou olhar pra você e dizer: “nossa, amor! Que demora, foi comprar ou fazer o pão?” e você vai rir e me beijar. (...) Mas não, se ao menos eu ainda tivesse aquele filho, aquele pedaço seu e meu num só corpo que não chegou nem a ser formado. Sabe, eu comecei a freqüentar assiduamente meu psicólogo, só que mais tarde ele me explicou e tentou me convencer que um psiquiatra seria mais indicado a mim. Nunca entendi exatamente o porquê, ele sempre falava na minha depressão profunda, derivada de minhas desilusões contínuas e de alguns complexos que eu nem ao menos tentei decorar os nomes. Mas acho que ele estava equivocado, porque eu to bem, amor, eu to feliz, eu só estou um pouco só. Eu acabei indo ao psiquiatra, e até gostei bastante dele, ele me passa uns remédios que me acalmam, que me fazem esquecer um pouco de você... de você e daquele filho, do nosso filho, que não chegou nem a nascer. Ah, amor, eu falo tanto de você e daquele filho, do filho que eu não tive! Falo pro psiquiatra, pro psicólogo, pras pessoas que encontro na rua, nos ônibus, nos bancos das praças, nas mesas de bar. Eu parei de tomar Martini rosé, amor. Lembra que você falava que era ruim, lembra? Então, eu parei de tomar. Eu não gostava mais de ver aquela cor, não suportava mais aquele vermelho. Aquele vermelho que me lembrava do nosso filho, sabia que o chão do meu banheiro parecia Martini? Uma duas ou três garrafas de Martini derramadas, mas não era. Era só a mistura do meu sangue, do nosso sangue, do sangue do nosso filho, derramado e misturado com a água que caia do chuveiro. A água do chuveiro que escorreu sobre mim por muito tempo, mas não tempo o bastante pra fazer de mim menos suja. Nossa, amor, nem te falei! Naquele dia alguns dos pedaços do nosso filho ficaram ali no banheiro, eu até distingui uma mãozinha ali no meio, parecia com a sua, amor! Nosso filho ia ser tão lindo quando você, sabia? E ele me faria companhia assim como você me fez, e depois me deixaria sozinha assim como você me deixou. Desculpa, amor! Eu não quis dizer isso. Você não me deixou sozinha, deixou nosso filho comigo... e eu o matei, amor. Me perdoa por ser uma assassina? Depois eu peguei nosso filho do chão e joguei no lixeiro perto da garagem, lá fora. Eu segurei a mãozinha dele ainda, tão pequena que se perdia dentro da minha. Deus vontade de guardar, amor, tanta vontade de por ele de volta dentro de mim. Aquele pedacinho que me restava de você. Eu deixei o que sobrou do nosso filho no lixeiro, como um resto de comida estragada, ou como um objeto quebrado e sem utilidade. Deixei sua única lembrança concreta lá fora, no lixo. Mas normal, amor! Depois eu entrei, liguei a TV, e chorei. Não Martini rosé, dessa vez foi um dry Martini, com vodka. Muita vodka. Era forte e me deixou bem tonta, assim como a vodka me deixa. Era um choro tão transparente, mas tão impuro ao mesmo tempo. Pude me embriagar de tristeza naquela noite. Dormi profundamente e acordei com tanta dor-de-cabeça, realmente eu chorei dry Martini... e com mais vodka do que eu pensava. Amor, eu vou ter que desligar, preciso comprar meus remédios, e sabe? Acho que quero ver minhas mãozinhas soltas, assim como eu vi as do nosso filhinho (que lindas que seriam as mãozinhas dele), mas eu sou tão covarde, amor! Eu não dei calmantes, analgésicos, nada, antes de matar nosso bebê. Eu apenas o matei, friamente. Ele deve ter sentido tanta dor, amor. Mas não, antes eu vou tomar remédios que garantam-me força quando eu ver minhas mãos soltas. Mas amor, me faz um favor? Liga pra alguém, avisando que venha me buscar e que me jogue naquele lixeiro perto da garagem, lá fora, ta? Você me jogou no lixo na hora errada, amor. Volta agora e me joga no lixo certo! Eu vou encontrar nosso filhinho agora, ele já deve ta grande, parecido com você. Depois, se quiser nos encontrar, solta suas mãozinhas e pede pra alguém te jogar lá, tá, amor? Nós seremos uma família feliz, e eu não mais estarei sozinha. Te amo, amor. Adeus.

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