sábado, 17 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte I)
Cara
A água caia sobre meu corpo e juntamente a elas as minhas lágrimas. Desde que eu cheguei em casa estou no banho, não sei mais há quanto tempo. Talvez umas duas horas, talvez mais. Eu havia passado o dia inteiro evitando contato com as pessoas, tinha evitado olhar no rosto dos outros por um motivo que eu não sei ao certo. Precisava de solidão. Sempre precisei. E agora, mais que nunca, eu vi que ficar só já tinha se tornado uma necessidade, uma sede que não passa. As pessoas me acham estranha, eu sei disso. Meus pensamentos e talvez até o que eu escreva parecem ambíguos, e reconheço que isso tem um motivo. Eu sei que as pessoas me acham estranha ao passo que sei que realmente sou estranha. Meus hábitos são um tanto incomuns, confesso.
Queria encontrar alguém que me compreendesse e que me completasse de um modo que eu não me sentisse sufocada. Mas as pessoas têm um costume chato de sempre quererem se adentrar à personalidade das outras, uma vontade de entender o que as outras passam e sentem. Isso me enoja. Eu sou chata, também reconheço isso. E por ser chata, fechada, solitária e (quem sabe) talvez até um pouco paranóica, fico cada vez mais isolada e trancada dentro do monstro que eu mesma criei.
Liberto-me dos meus devaneios e desabafos por um tempo e abro os olhos. O banheiro é todo branco, como uma sala de tratamento, penso. Em meio a alguns pensamentos estranhos e gozados, me vem algo à mente: “como é bom morar sozinha.” Morando sozinha eu posso passar o tempo que quiser no meu banho sem incomodar ninguém. É estranho, confesso. Mas coisas desse tipo fazem de mim uma mulher mais feliz. Se é que eu sou uma mulher, ou se é que eu sou feliz.
Sinto-me bem em banheiros. Passam-me uma sensação forte de limpeza e de libertação. Gosto de água, gosto de branco, gosto desse cheiro de sabonete e shampoo que o ar aqui dentro tem e gosto de me sentir livre para chorar como me sinto aqui. Ninguém nunca vai saber que eu chorei, meus olhos dificilmente ficaram vermelhos e muito provavelmente nem meu rosto, sempre em contato com a água.
Evitei ao máximo mas não pude controlar, veio-me agora um desejo incontrolável de ver o Victor. Não sei o que está acontecendo entre a gente, mas sinto que ele está se distanciando de mim e isso me dói. Um dos poucos que não me sufoca e que eu amo. Sim, ainda tenho sentimentos. Por mais que isso também me doa, eu o amo. Não, não somos namorados. Não, não somos só amigos. Não sei explicar o que há entre a gente, às vezes penso que o Victor é um pedaço de mim que criou vida própria e saiu pelas ruas. Feliz ou infelizmente, eu acabei o encontrando e ele faz com que eu me sinta completa. Não quero que ele se perca de mim, não quero permitir que me esqueça. Mas eu sou uma pessoa tão difícil de se entender, ou melhor, de se aceitar. Ele se zanga comigo, faz birra, mas volta. Espero que volte.
Desligo o chuveiro, ainda apreciando as últimas gotas de água que agora caem sobre meu rosto. Lembro que esqueci a toalha e lembro um dos outros bons detalhes de morar sozinho: se você esqueceu a toalha, não há problema em sair do banheiro, ainda nua, para buscá-la. Passo minhas dezenas de óleos corporais tão calmamente como se estivesse vivendo tudo em câmera lenta. E realmente é assim que me sinto enquanto ainda penso no Victor.
Saio pela casa, molho todo o chão e penso que vai dar trabalho para secar depois. Tenho a impressão que estou atrasada para alguma coisa, olho no celular que horas são e lembro que deveria ir ao café com o Victor. Lembro vagamente que tínhamos combinado algo e que talvez por isso eu tenha demorado tanto. Ainda temo o nosso reencontro, há alguns dias não nos vemos e é sempre tão comum vê-lo. É como se já tivéssemos nos perdido sem que isso tenha realmente acontecido. Coloco o celular sobre a mesinha de cabeceira e busco a toalha. Uma toalha tão branca quanto os azulejos do banheiro e tão limpa e pura quanto o meu sentimento por Victor.
Ainda antes de me secar, como que para demorar mais e adiar essa ansiedade estranha que sinto, eu ligo o som. Christina Perri pergunta quem eu penso que sou repetidas vezes e eu sorrio para mim mesma. Deixo a toalha cair no chão e vou até a cozinha tomar um copo de água. Mas, com toda a pureza daquela água, eu vejo a solidão daquela faca de cabo branco que estava ao lado do copo e a pego.
É uma comparação cômica de se fazer, mas eu me acho parecida com uma faca. Psicologicamente falando. Posso ser inofensiva e posso matar alguém, inclusive a mim mesma, inclusive ao Victor.
Sento no chão da sala ainda nua e ainda com os cabelos pingando água. Observo a faca por um momento longo que me parece curto. Faço o primeiro corte na minha coxa esquerda. Um comprimento aproximado de dez centímetros. Não dói. Só sinto um calor forte no rosto ainda molhado. Penso em me levantar e molhar o rosto, mas prefiro continuar naquele “ritual” que está me parecendo tão interessante. Um fio de sangue se junta à água e escorre até alcançar o chão. Minhas pernas estão esticadas sobre a cerâmica branca daquela sala e minhas costas encostadas naquelas paredes de um bege tão claro, mas que eu prefiro pensar que também é branco.
Corto-me pela segunda vez, agora na minha coxa direita. Penso que ficará bem escondido e que se, por algum acaso, alguém ver aquilo será o Victor. Eu não tenho vergonha do Victor e ele já viu minhas coxas inúmeras vezes, já que é a única pessoa que me visita e eu tenho um hábito também exótico de andar de calcinha pela casa, como criança.
Mas eis que não consigo mais me controlar e agora corto um pouco mais abaixo do primeiro corte. E corto de novo, e de novo, e de novo, e de novo e inúmeras vezes eu me corto. Minhas pernas já estão cortadas do início da coxa até o fim do joelho. O sangue escorre pelo chão e eu lembro do Victor mais uma vez. Lembro também do trabalho que aquilo vai dar para limpar e depois prefiro não limpar, é tão lindo o contraste que há entre o sangue e aquele chão tão branco. Coloco vagarosamente a mão sobre um dos cortes e, com o sangue, sujo um pouco também da parede. Sorri para mim mesma de novo.
Agora parei um pouco e lembrei que a música já está repetindo há um bom tempo. Mas não me preocupo com isso. Ao levantar a cabeça, vejo que a luz do celular está acesa e muito provavelmente ele está chamando. Não ouvi antes por causa da música. Levanto-me. As pernas doem um pouco. Na verdade não é exatamente dor, eu me sinto tão bem. Mas ardem, uma sensação estranha. Ainda com a mão suja de sangue pego o celular, Victor está ligando e posso ver que já existem outras chamadas não atendidas ali. Fico com o celular em mãos até a chamada cair mais uma vez. Ele deixa uma mensagem de voz e eu penso em ouvir depois. Aproveito que já estou de pé e aumento o volume do som.
Sento-me novamente no chão e começo a sorrir. Penso no Victor e se ele ainda estaria me esperando no café. Deixa estar, depois eu me desculpo. Pego a faca que estava sobre o chão e novamente me corto. Desta vez na cintura, bem na cintura. Os cortes agora são mais longos, corto minha barriga em vários pontos, um pouco nos pulsos e (por quê não?) os seios.
A campainha está tocando. Deixo chamar. Penso em perguntar quem é, e, com sinceridade, não sei ao certo se perguntei ou só pensei em perguntar. Pego um pouco do sangue que agora está em minha barriga e passo no meu rosto. Acho que coloco um pouco na boca. Não lembro. Os pensamentos agora parecem um tanto que desordenados. Christina continua dizendo que aprendeu a sobreviver apenas “metade viva” e eu lembro do Victor.
- “Alana! Alana!”
O Victor está lá fora. Como posso explicá-lo esta bagunça? É melhor eu atender, não quero que minha outra metade viva vá embora. Tento levantar, mas dessa vez dói de verdade, não é mais só uma ardência. Estou um pouco fraca e tenho sede. Levanto-me lentamente e vou até a porta.
- “Meus Deus, Alana! O que você fez, Alana? Amor, você enlouqueceu?”
Não estou com paciência para falar agora. Penso em dizer que não se preocupe, que estou bem, mas, quase sem perceber, me deixo cair em seus braços. Eis que me lembro que ainda não me vesti e sinto meu rosto corar um pouco. Lembro também que devo o estar sujando com meu sangue, mas ele está de branco, então talvez penso que seja melhor assim. Penso em dizê-lo também para não chorar, começo a notar que o Victor chora.
“Meu amor! Meu amor! Por que você fez isso?”
Ele repete entre soluços e eu penso em dizer que não sou acostumada com ele me tratar tão bem assim, mas me calo. Victor grita algumas coisas que eu não consigo entender. Sinto que ele treme e só depois percebo que eu também. Victor senta-se no chão onde eu estava um pouco antes, ele me deita e põe minha cabeça em seu colo. Seus olhos estão tão vermelhos quanto eu. Sinto uma pontada de culpa mais logo passa. Queria falar, dizer ao Victor o quanto eu o amo, mas ainda me calo. Sinto-me cansada. Sinto-me amada. E, mais do que nunca, sinto-me limpa e pura.
Victor continua comigo em seu colo enquanto vejo que há um telefone em seu ouvido, acho que está chamando a polícia, mas para quê? Será que entrou algum ladrão aqui? Penso mais uma vez em dizê-lo que não se preocupe e que estou bem, mas talvez eu não esteja, percebo. Uma vontade absurda de beijar seus lábios e de acalmá-lo.
“Por que tão nervos...”
“psiiu, calma, não fala nada, calma, linda, vou te salvar, calma”
Ele ainda chora. Queria consolá-lo. Será que algo aconteceu a ele e ele não está querendo desabafar? Penso em dizer que estou aqui para ouvi-lo, mas tenho vontade de dormir e uma fraqueza. Eu o amo. Eu preciso do Victor, percebo. Ele é a única pessoa do mundo a qual eu preciso, tento dizer. Calo mais uma vez.
Ele meche em meu cabelo enquanto chora e a partir de agora eu sinto que não estou mais tão consciente do que está acontecendo. Uma misantropia estranha. Uma névoa. Não sei o que é isso. Amor, eu penso. Victor continua fazendo uma espécie de cafuné em meus cabelos enquanto chora e me beija. Subitamente percebo que há mais alguém conosco, acho que era para a ambulância que ele ligava e que esta chegou, Victor sorri. Tento sorrir também.
As pessoas estão todas de branco, uma enfermeira qualquer põe a mão no meu pescoço. Faz uma cara estranha e diz algo ao Victor. A partir de agora não consigo mais manter os olhos abertos, nem ouvir nada do que se passa no ambiente. Só sinto. Sinto uma paz repentina, um aperto no meu peito, borboletas no estômago e sinto amor. Amor. Amor. Amor. Amor. Meu pelo Victor, dele por mim. Agora sinto a morte. E agora não sinto mais nada.

3 comentários:

  1. Ansioso pela Coroa.

    Hoje mais do que nunca eu vejo que a situação sempre esteve invertida. O fã aqui sou eu.

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  2. Outra:

    a trilha sonora caiu como uma luva.

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  3. Eu tenho que tirar o chapéu para o vosso inigualável dom de escrever. Eu estou perplexo com os textos, sério, se eu já era seu fã, agora eu sou 50 mil vezes mais.

    HAHAHA

    ;*

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