terça-feira, 20 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte IV)
Nem cara, nem coroa:
esgotaram-se as moedas.
Minha cabeça dói, como se eu tivesse tomado litros e mais litros de vinho e levado uma surra de um sujeito qualquer no meio da rua. A vertigem continua, uma ânsia de vômito e amnésia. Abro os olhos e me deparo com o quarto branco. Começo a observar melhor e vejo que estou usando uma camisa de força. Praguejo em voz baixa. Que diabos estou fazendo aqui? Levanto, ou melhor, tento levantar. Uma fraqueza nas pernas. Tento gritar, minha voz sai cansada. Devo ter bebido demais ontem e devem ter me confundido com algum louco. Não faz sentido. Por que logo eu, meu Deus? Levanto cambaleando e procuro a porta. Há apenas umas brechinhas ali, vou gritar, alguém vai me escutar, eu conto o que aconteceu... Merda, o que aconteceu? Enfim... não é preciso de uma explicação muito longa pra perceberem que não sou louco. Vou tentar.
...
- Doutor, doutor!
- Sim?
- O Marcelo está no quarto gritando, diz que foi um mal entendido, que precisa que acreditem nele. Que ele responde a todas as perguntas que quiserem e vocês verão que ele não é louco. Doutor, não sei o que fazer, ele parece estar em si agora. Seria melhor conversar com ele?
- Não o soltem! Eu irei resolver isso.
...
Branco, branco, branco, branco. Esse lugar precisava de um vermelho. Veja como está mais bonito agora, Alana! Ficou do jeito que você queria? Você sabe que nunca fui bom em decoração de casa, mas você está gostando dessa parede desse jeito? Acho tão bonita a combinação do vermelho e o branco, você também acha?
...
- Dona Vera, seu filho esteve em si por um tempo hoje à tarde. Uma enfermeira veio me comunicar e fui ao encontro dele. Ninguém o observou por questão de minutos. Quando cheguei, tivemos que sedá-lo com urgência. Marcelo havia mordido sua língua até sangrar e estava brincando de colocar o sangue nas paredes. Sinto que devamos ter uma conversa séria sobre seu filho e os traumas sofridos por ele, o comportamento dele tem sido cada vez mais estranho. Ele ficará sob vigilância 24 horas por dia agora, os ferimentos já estão sendo tratados. Ele continua sendo sedado, mas infelizmente essa é a única solução que encontramos temporariamente.
(A senhora continha o choro mais uma vez, entre soluços).
- E então?
- Marcelo foi criado apenas por mim, meu marido faleceu antes do seu nascimento. Sempre foi uma criança gentil e amorosa. No início da adolescência começou a se rebelar por motivos estranhos, chorava bastante, mas eu e minha irmã achamos que era fase e deixamos isso de lado. Ele sempre falava de uma moça, a Mariana. Desconfiávamos que fosse apaixonado por ela, mas nunca tivemos idéia de quem era a garota. Até o dia em que eles fugiram. Marcelo tinha apenas 17 anos. Pouco mais de um ano depois, o pai da menina descobriu onde eles estavam e a ligou dizendo que ia buscá-la. Marcelo conta que tinha saído para comprar pão esta tarde, e quando voltou escutou apenas o barulho do chuveiro ligado. Chamou por Mariana inúmeras vezes e ela não respondeu. Abriu a porta e deparou-se com ela deitada no chão, os olhos abertos e os pulsos cortados. Ligou para ambulância, mas já era tarde demais, Mariana estava morta. Depois disso ele voltou para cá, mas não conversava mais como antes, evitava falar nesse assunto. Alugou um apartamento aqui e ficou vivendo não sei de quê. Eu sempre perguntei ao Marcelo se ele precisava de dinheiro ou como ele conseguia se sustentar, ele nunca me respondeu. Soube por outras bocas que ele havia sido encontrado visitando o túmulo da Mariana algumas vezes, e que sempre que havia alguém da família por perto, ele era expulso. No funeral da garota, o pai dela o expulsou aos gritos e disse que nunca mais atormentasse a sua família. Desde então ele só se tornou cada vez mais fechado, mas sempre muito carinhoso e por vezes até atencioso comigo e com a tia. Agora eu recebo um telefonema avisando que meu filho está aqui e me vem esse turbilhão de notícias as quais eu não sei como reagir.
- Muito interessante, acho que se encaixa perfeitamente no contexto o qual eu queria chegar. Identificamos no seu filho uma série de transtornos psicológicos graves, entre os quais a personalidade limítrofe e a bipolaridade. Podemos usar e provar isso no tribunal. Seu filho continuará no tratamento e acredito que mais cedo ou mais tarde poderá voltar ao convívio social.
...
Passaram-se anos antes que eu pudesse me acostumar com a idéia de ter um filho louco. Um tipo de maníaco depressivo que eu só conhecia por filmes e que não achei que pudesse existir na vida real. Hoje me encontro velha, cansada e cada vez mais triste de saber que nada posso fazer pelo meu Marcelo. Ele não sabe quem é, ele não sabe quem eu sou. Não se lembra de nada do seu passado como Marcelo e acredita fielmente ser o Victor. A cada visita eu volto com um sentimento de pena e desamparo maior. O que me conforta é que agora eu tenho direito a visitá-lo, e mesmo que eu já esteja quase acreditando que o meu Marcelo se perdeu para sempre e agora é o Victor que vive ali, eu gosto de ter essa vivência com ele. Sei que é insano, mas sinto que o compreendo e me sinto culpada por isso. Se eu tivesse dado a atenção necessária ao meu filho, talvez eu tivesse evitado quatro mortes. Mariana. Alana. Victor. E do próprio Marcelo. Pois mesmo ele estando com o corpo ali e com os órgãos funcionando, não é mais ele que vive.
...
- Minha querida Vera, por tanto te esperei. Como andas?
- Bem, e você, Marcelo?
- Eu também estou muito bem. Mas ei, por que esse rostinho triste, hein? O que aconteceu, meu bem? Posso te ajudar? Olha, sei que a senhora é meio louca e ainda acha que eu sou esse tal de Marcelo, mas eu tenho um carinho grande por ti. Sabe que todo mundo é um pouco louco lá no fundo, né?
- Não estou triste, também gosto de você. Eu trouxe uma coisa pra você, um presente.
- Ah, sério? Que docinho, gente. Não precisava, e o que seria?
- Trouxe uma pílula que quando você tomar, te trará Alana de volta.
- Nossa! Eu não sei o que dizer. Quando a gente passa o tempo enclausurado nesse inferno, não sabemos da modernidade que acontece pelo mundo afora. Eu queria muito que a senhora me desse isso, e rápido! Eu te contei a coitadinha caiu da escada nesta quinta-feira, não contei? Quando cheguei no meu quarto ela estava lá, caída. Não sei de que escada foi, porque não tem escadas lá. Mas ela me disse que tinha sido uma queda e Alana é sempre muito correta no que diz, nunca mentiu para mim em anos de casamento. Sou muito feliz com ela, sabe Dona Vera? Mas desde essa queda não no vemos, acho que ela está se tratando no hospital. A senhora garante que se eu tomar isso ela melhora e volta logo?
- Garanto. Mas você tem que me prometer uma coisa.
- Até duas.
- Que só vai tomar quando chegar no seu quarto e que vai escrever algo justificando isso antes, ok? Sem mencionar meu nome.
- Claro, querida! Tem que ser no local do ocorrido, é? Faço isso sim. Tem lápis e papel lá, eu escrevo direitinho e não cito seu nome, pode deixar.
- Coloque dentro da sua roupa e não deixe ninguém ver. Tenho que ir agora, depois nos vemos. Te amo.
- Certo, meu bem. Também.
...
Peguei um giz de cera e um papel, sabe que aqui não nos deixam usar canetas afiadas? Acham que nós faríamos alguma coisa com elas. Babacas. Escrevi num papel:
Hoje a minha mãe trouxe remédios para que eu pudesse ir. Eu sei o que está acontecendo, sei que ela só fez isso porque realmente me ama. Sei que agora vou encontrar Mariana e sei que não fiz mal algum ao tirar a vida de Alana e Victor, aqueles imbecis que contaram ao pai do meu amor onde nós estávamos. Nós confiamos neles e eles nos traíram. Quero dedicar a eles a culpa da minha morte, um troco pelo peso da morte deles que eu carrego. Vida por vida. Amor por amor. Não culpem minha mãe por isso, agradeçam pela ajuda e diga que eu nunca a esqueci. Com carinho, Marcelo.
Antes de ingerir a pílula que me traria Alana de volta, eu reli a carta. Não entendi ao certo do que se falava, pareceu-me uma brincadeira de mau gosto. Com as unhas, cortei um pouco da minha pele e desenhei um coração sob meu lençol branco. Dentro do coração coloquei um A e um V. De um tom de vermelho tão bonito quanto as rosas que eu deixei sob seu caixão, num lençol tão branco quanto as flores que acompanhavam as rosas vermelhas.
Tomei o remédio de uma vez, deitei-me. E esperei dar a hora de buscar Alana para nós irmos ao café.

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