quinta-feira, 26 de maio de 2011

Onde estão as chaves?

Foi estranho quando ela pegou a bolsa na mão, ficou de pé e olhou em volta do apartamento. Cada minúcia, um olhar detalhado do que a rodeava, as malas postas ali ao lado. Aquele apartamento em que ela vivera nos últimos meses, que tanta coisa – figuradamente – vivera, e que agora se encontrava tão vazio quanto ela própria. Repetia mentalmente que a hora das mudanças havia chegado, já estava passando, na realidade, e que era hora de se permitir. Por que se permitir é algo tão difícil para os virginianos? E só agora, de malas feitas, notou o quanto aquela pequena morada de um cômodo só lhe era importante. Como se houvesse toda uma história de amor entre eles dois, ela e o apartamento, quiçá sua única verdadeira história de amor. Tantos segredos compartilhados, tantos telefonemas que só aquelas paredes ouviam, risos até, noites inteiras em claro, fossem estas com os livros ou com a lembrança. A mesma lembrança que agora a fazia sentir a necessidade de se desfazer daquele lugar. Do seu lugar. De qualquer forma, estivesse onde estivesse, nunca se sentiria convidada. Nenhum lugar era dela, era a este que ela pertencia: a lugar nenhum. Completamente deslocada na casa e na vida. Mas aquela lembrança permaneceria, fosse onde fosse, estaria com ela, por dentro, por fora, ou pelos dois. Expressa nitidamente nas olheiras e no rosto avermelhado, nos olhos avermelhados: fossem de alergia ou de choro. Culpando sempre a miopia ou a insônia. Agradecendo por ainda ter algo que a mantivesse de pé, por mais que esse algo fosse desconhecido, existia. Existir basta? Pra uma pessoa, pra um amor, pro abstrato. Eu ainda não sei conviver com a saudade. Eu ainda não contenho as lágrimas ao ouvir aquela música, a nossa. Que a muito é a mais tocada na estação da minha cabeça, que perdura por estações e completa aniversários junto a nós dois. E ah, meu Deus, eu preciso tornar datas irrelevantes. É impossível pra mim não lembrar exatamente o que acontecia nesse mesmo momento a exatamente um ano atrás. É impossível não lembrar do meu sorriso, do seu sorriso. Da vida inteira que eu pensei que teríamos juntos. Do teu abraço, do teu beijo. E te ver sorrir, hoje, me doeu mais do que qualquer outro dia. Por que você tem que ser tão doce? Eu viveria melhor se eu não tivesse o teu abraço pra lembrar, pra desejar. E agora, de pé nesse apartamento, eu só tenho minha bolsa e dois bolsos. Num dos bolsos eu guardava alegrias, ele furou e eu acabei perdendo tudo no caminho, caminho que foi tão longo para quem esteve sozinha o tempo todo. Noutro, desventuras. Este último continua intacto. E repleto. Eu tenho que parar com isso, mudar de casa vai ser o primeiro passo. Tomara que eu não volte atrás. Estou cansada de dar o primeiro passo e depois voltar atrás, tenho que aprender a andar em frente. Tenho que desaprender a conjugar o verbo doer. Dói. Tudo. Eu, minha cabeça, minhas pernas e tudo neste apartamento. Por mais que eu limpe, lave, organize, continua com cheiro de mofo e tristeza. Cheira como eu. Eu me sinto tão ligada a este vão, não queria me desfazer dele. Veja só que a autora acaba por confundir as histórias, vou voltar atrás, reformular: isso deve ser escrito em terceira pessoa, essa não sou eu, eu não estou em pé com uma bolsa, e sim sentada com a caneta e o papel. Que há tempos são seus únicos amigos leais, a caneta e o papel. Os calmantes também. Mas ela também sorri. Também sonha. Por mais que sua memória não permita que ela lembre quase nada no dia seguinte, sabe que sonha pelo semblante de calma que possui ao acordar, tão distinto do que domina o seu rosto antes de dormir. Luísa sentia a cabeça arder, em pé com aquela bolsa. Precisa de um analgésico, de uma música, de alguém para cantar junto dela. Mas esse alguém que cantava essa música junto dela, agora deve cantar alguma outra música com o novo amor. E ela morde os lábios e se atira na cama. E chora. E se atrasa. E o tempo está passando, Vanessa, e o tempo está passando, Luísa. Você tem que deixar tudo para trás. Você tem que se amar, ou ao menos aceitar a condição que você tanto repete que já aceitou. Da boca pra fora. Luísa se esconde atrás dos óculos. Ou atrás dos lábios. Seus olhos não lhe entregam mais. O tempo lhe ensinou a perder a expressão. Minhas mãos estão dormentes, preciso de um café. Eu preciso reorganizar minha vida. Não posso perder o foco, não posso mudar o foco. Lembre-se de Weber, Luísa. Lembre-se. Só se permita esquecer o que deve ser esquecido, pare de fazer sempre o inverso. Pare de se martirizar e de se culpar por coisas que você não é (de tudo) culpada. Culpe o destino, culpe outrem. Mas por favor, pare de se culpar. É uma boa hora para se aceitar. Ame-se. É difícil, você é forte, há muito você aprendeu que nunca foi fácil, que nunca é fácil. Nem será. Prepare-se pro futuro, vista sua armadura mais uma vez, volte à luta e lute. Nem tudo está perdido em quanto você ainda tiver o amor, por mais que doa. E volto à história mais uma vez: ela estava deixando o apartamento, de pé, com sua bolsa, olhando ao redor, lembrando e chorando. Que ultimamente vinham sendo os verbos mais comuns em sua vida. É tão triste sofrer sozinha. É tão deprimente sofrer para dentro. Fazer piada quando não se vê graça, a não ser os dissabores pelos quais ela tem passado. Estes, sim, chegam a ser cômicos. É tanto álcool na vida de Luísa. É tanta angústia. Metas! Objetivos! Quase uma lei de diretrizes orçamentárias. Luísa tem que estudar, que ocupar a mente. Escrever não a faz mais bem, não põe pra fora, mas alimenta o monstrinho que vive dentro dela. Luísa só chora. Chorar não resolve, nunca resolveu. Mudar de casa não é mais o primeiro passo, as lembranças não estão aqui. Lá, eu quis dizer. As lembranças se encontram na parte mais perspicaz do consciente dela, não no apartamento, não neste quarto. Ela desfaz as malas, organiza o apartamento do jeitinho que estava antes. Luísa se sente em casa mais uma vez.

2 comentários:

  1. A Luísa precisa se fixar no pós-morten de uma mudança. Deixar que a aspereza desse momento arranque todas as coisas que lhe criaram um fardo desnecessário afim de continuar voando e se pertecer a nada e a tudo. Mas sei que ela também deve odiar grandes decisões.

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