quinta-feira, 17 de junho de 2010

By my side.

Chove lá fora. Não sei há quanto tempo, desde que eu acordei ou talvez desde quando eu fui dormir. Não tenho idéia de que horas são, quebrei todos os relógios da minha casa há um bom tempo e quebrei inclusive o relógio da minha mente. Não sei em que tempo estou, ou o que estou fazendo, me sinto perdida. Estou perdida no tempo, no espaço, nas horas e, o pior de todos: em mim mesma. Para ser sincera, não sei se estou dizendo isso agora, ou se isso já foi dito e eu estou só lembrando, ou se estou só pensando em dizer.
Eu ainda estou bêbada. Desculpe, estou confundindo tudo, inclusive você. Você está aí? Há alguém aí? Há tanto tempo não há ninguém. Só nos meus pesadelos eu tenho alguém... Sempre tão igual, um túnel escuro com uma pessoa que amo do lado, mas quando o tempo vai passando e eu vou lembrando que não amo ninguém: estou só de novo. E dói.
Minha casa está tão bagunçada, um cheiro ruim de mofo nesse quarto, um cheiro denso, pesado, mofo e cigarro e suor e gente e tristeza e solidão. Lá da sala, ouço a voz do Tom Chaplin mandando eu tentar de novo “try again, baby” ele repete inúmeras vezes, não cansa. Eu continuo tentando “with the sun in eyes” but still trying. Talvez seja só mais uma alucinação e eu não esteja ouvindo nada, mas canta aqui dentro.
Tudo aqui dói. Minha cabeça, minha alma, minha garganta. Não sei se por vontade de gritar, por falta de força ou por sede. Vou levantar e tomar mais uma dose, é melhor. Será que ainda tem whisky?
Acabei de reparar que tem um homem ao meu lado nessa cama. Mesmo sem haver calendários, se você quiser, eu aposto minha vida como hoje é domingo - e por mais que eu torça pra perder a aposta, não perderei – hoje é domingo.
Não consigo me lembrar o que aconteceu ontem à noite, tinha cheirado três fileiras de cocaína antes de sair. Mas é sempre assim, sempre aos sábados. A semana inteira eu busco um emprego qualquer e sinto vontade de me bater por ter escolhido ser jornalista. Nenhum jornal jamais vai aceitar alguém com minha aparência, há tanto eu deixei de ser aquele rostinho bonito... agora eu sou só o que sobrou. O que sobrou e que tenta se reerguer, que tenta voltar ao passado e fazer tudo de novo: mas fazer tudo igual. Quando uma alma é posta no mundo, seu destino já foi traçado, resta a ela aceitar, é indiscutível, não é por acaso. Por mais que eu tivesse tomado um caminho diferente, sempre o final seria o mesmo. Então eu ponho aquele velho vestido de cetim vermelho, já sem vida pelo tempo, já cheirando a mofo assim como o meu corpo, assim como minha casa, assim como minha vida, minha alma, e saio às ruas procurando uma forma de conseguir me alimentar ou ao menos de manter meus vícios.
E me deito com homens. Com tantos. Às vezes com mais de um por vez. Sempre drogada, sempre com o vestido vermelho e sempre com uma tristeza tão forte aqui dentro. Sempre com uma vontade de ter sido tudo que eu não sou. Eles penetram em mim e eu recebo com fúria. Cravo as unhas em suas costas para não gritar, mas grito. Muitas vezes não me pagam, outras me pagam o tão pouco que só tomo uma dose de whisky, mas não há nada que eu possa fazer.
É com esse dinheiro que eu pago minhas contas e compro aquela velha carteira de marlboro red que me acompanha todas as noites, quando eu ligo a televisão e fico passando os canais, sem nem ao menos olhar o que acontece em cada um deles. Imersa nos meus devaneios e no cansaço dessa minha jornada de Jornalista Desempregada Infeliz Sozinha À Procura de Emprego. Unicamente essa carteira de cigarro me acompanha todos os dias enquanto eu choro. Só meus cigarros e minha dose, meu copo sempre cheio e meus goles cada vez maiores.
Mas eu não desisto. Quando eu acordo no outro dia, ainda sem saber que horas são, eu levanto e vou à procura da minha felicidade. Essa palavra soa estranha saindo da minha boca, prometo que não repetirei. É o único momento do dia em que falo, sabe? Eu nunca falo. Nunca. Só quando busco emprego. Eu falava demais antes, acho que quando eu era adolescente já falei o bastante pela vida inteira... Eu não tenho com quem falar aqui e quando estou a trabalho não converso com meus clientes. Sou prostituta, não psicóloga. Estou pouco me fodendo para os problemas deles, já tenho demais.
Mas eu não tenho nenhum. Nada com que me preocupar. Eu só tenho a mim, e eu não sou grande coisa. Continuo aqui porque o Tom Chaplin continua ali na sala, mandando eu tentar de novo, e porque ele faz eu me lembrar da minha mãe me mandando nunca desistir. Ela falava pra eu nunca desistir e que eu era o orgulho dela e que ela me amava mesmo quando ela estava morrendo. Ela estava morrendo e eu não podia fazer nada por ela, da mesma forma que eu não posso fazer nada por mim.
Às vezes eu penso que é ela no meu sonho, mas não é. Se fosse ela não iria embora e sempre vai. Minha mãe foi embora a primeira vez eu era só uma criança, mas ela dizia pra eu não desistir, pra eu sempre tentar, pra eu fazer diferente dela, que se entregou fácil. Ela não me deixaria por uma segunda vez. Era soro positivo, mas ela não trabalhava nesse meu trabalho, se é que isso é um trabalho. Minha mãe era digna, descente, não uma putinha como eu, mas foi estuprada. Eu sou estuprada todos os dias, mas de uma forma diferente. Estupram minha alma e me dói tanto. Eu sempre lembro dela em dias como hoje, domingo, quando eu acordo.
Dói acordar, só me consola saber que ainda estou tentando e que enquanto for assim eu estarei cumprindo meu propósito. Às vezes me batem quanto estou na cama, mas eu não peço pra parar. Eu devo estar pagando alguma dívida passada, vai saber. Gosto quando me batem, me poupam de um esforço. Eu sempre me bato quando chego do trabalho, às vezes me corto, mordo. Mas fica pior pra trabalhar no outro dia, aí evito ser muito cruel. Gosto de sofrer. Na verdade não sei se gosto ou se me adaptei. Sempre a vida me doeu.
Não conheci meu pai. Ele mandou minha mãe me matar quando eu ainda estava na barriga dela e mandou que nós sumíssemos da vida dele. Assim fizemos. Não sei se ele está vivo ou morto para os outros hoje, mas pra mim ele nunca viveu. Morreu a partir do dia que deixou minha mãe sozinha, comigo. Assassino.
Sinto-me cansada agora. Um pouco de tontura. Uma vontade forte de vomitar e de morrer. Mas não posso, tenho que continuar tentando. “Baby, I try again. Baby, I die every night, every time.” Every time. Quando minha mãe morreu, eu pensei que ia embora com ela, mas eu continuo aqui, tentando, por ela. Eu amei minha mãe. Mas ela morreu e levou meu amor. Talvez todo o amor que eu tivesse.
Tenho tanto medo. Sempre tive. Aprendo a superá-los, isso é mais fácil quando a vida te ensina na marra, sofrendo um pouco cada dia, lutando um pouco mais cada dia. Eu sonhava em ser jornalista, mas só consegui o diploma, nunca um emprego. Nunca consegui nada. Nenhum dos meus sonhos. Eu sonhava em ter minha mãe de volta, nunca tive. Sonhava que iria tocar piano na sala da minha casa, nunca tive uma casa própria, quanto mais um piano. Nunca aprendi a tocar piano. Eu sempre quis um amor pra vida inteira, alguém que gostasse de mim. Nunca mais amei ninguém; nem por um dia, quanto mais por uma vida. Quem gostaria de uma prostituta?
Mas eu continuo tentando... Se Deus estivesse vivo e se comovesse ele me levaria pra perto da minha mãe. Mas eu li uma vez que Deus morreu no holocausto ou no Vietnã, deve ter sido isso. Vou botar mais uma dose, espera.
Esse homem não acorda mais. Será que ele já me pagou? Já está na hora de ir embora, senão a esposinha vai ficar preocupada e ligar pra polícia dizendo que foi seqüestrado. Idiotas. Todos um bando de idiotas num mundo idiota numa cidade mais idiota ainda. E a maior idiota de todas sou eu, que tenho esperança de um dia conseguir ser alguma coisa. É tão difícil não ser nada. Tão ruim.
Ascendo um cigarro, fumo em dois tragos, paro, espero, penso. Digo:
- Querido, GO OUT. Me deixa em paz, Darling. Favor quando sair encostar a porta, tá? O dinheiro deixa em cima da mesinha de cabeceira que eu vou tomar um banho para tirar seu cheiro de porco de cima de mim.
Ninguém nunca discute comigo, ele foi embora. Mas eu não fui tomar meu banho. Nesse exato momento estou trancada no banheiro, sentada, com as duas mãos na cabeça e chorando. E cantando. Try Again. Try Again. Como me dói viver, como me dói. Eu sou tão suja. Falo do meu pai, mas sou tão assassina quanto ele. Eu matei minha mãe, foi por minha culpa que ela saiu na rua àquela hora, pra comprar remédio pra filhinha doentinha coitadinha em casa. Minha mãe devia estar comigo, mas eu a matei. Assim como me mato cada dia um pouco. Assim como tirei o direito de viver de uma criança cada vez que eu engravidei.
Eu amava meus filhos. Todos eles. Mas eu não podia deixá-los nascer, sem pais, sem perspectiva, sem uma mãe descente. Quando eles fossem pra escola iam dizer que eles eram filhos da puta, e eram. Tudo que eu fiz foi por amor, por amor, por amor, por amor, por amor, SÓ POR AMOR.
Amei tanto que não me restou nada. Nada além dessas cicatrizes deixadas pelo tempo, desse rancor, dessa solidão, dessas marcas sofridas no rosto e daquele vestido de cetim vermelho fedendo a mofo.
(...)
Adormeci no chão gelado do banheiro, quebraram a porta. Um barulho estranho aqui, pessoas, fumaça. Não consigo entender o que está acontecendo, mas não é bom. Não ligo, nunca é bom, nem será. Alguém me pega nos braços, devo estar sonhando de novo. Tudo apagou.
(...)
São exatamente oito da manhã. Não estou mais em casa, aqui tem relógio. Pessoas de branco e falam no fogo. “O cigarro incendiou a cama, ela estava drogada no banheiro, inalou muita fumaça, acho que n... os pulmõ... fum...” Sinto dificuldade pra entender o que dizem. Mas sinto que seja bom. Minha mãe está aqui ao meu lado, segurando minha mão. O túnel não é tão escuro afinal, um sol nos meus olhos, algo tão forte. Muita luz. Ela sorriu pra mim, eu retribui o sorriso. Peço perdão. Ela me manda silenciar, faz aquele mesmo gesto que fazia quando eu era criança. Aperta forte minha mão. Não estou mais sozinha. E de repente está tudo escuro de novo. Acabou.

3 comentários:

  1. SENSACIONAL!!!!!!
    Toma a primeira colocação de 'Aviso Prévio'

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  2. "Quando uma alma é posta no mundo, seu destino já foi traçado, resta a ela aceitar, é indiscutível, não é por acaso."

    B - R- A - V - O!

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