sexta-feira, 1 de junho de 2012

Karamázovi

Plural de Karamázov. Seria, simbolicamente, aquele que com seu comportamento desacertado dá os rumos do próprio destino.


Que mocinha peculiar era aquela. Sempre com seus passos rápidos de quem está com pressa, mesmo sem estar. Sempre com os dois braços trazendo fortemente o livro pra perto de si como se ele fosse fugir caso ela não o abraçasse daquela maneira. Era nova ali. O que a deixava ainda mais desconfortável e aflorava ainda mais a sua indiscutível timidez. Os primeiros dias foram os mais difíceis, como sempre são. Havia conseguido um emprego de meio expediente em uma loja, que daria para conciliar com as aulas que assistia durante a noite. Estudava história. Não sabia exatamente o que queria ser, nem tampouco por qual razão resolveu estudar história. Mas gostava, à sua maneira. Saia do trabalho sempre às 14h. E, sempre às 14:30, passava num banco próximo à sua casa. Na maioria das vezes para checar o movimento bancário da sua conta, realmente, outras só pra não sair da rotina. Sentava, abaixava um pouco seus óculos, abria o livro e ficava lendo, quietinha, até as 15:30. Não lembrava de alguma vez ter descumprido este trajeto diário. Ao chegar em casa, punha suas coisas em ordem, revisava alguma matéria para a aula, ia à universidade e deitava assim que voltava. Mas não dormia. A menina gostava de imaginar, era uma sonhadora por excelência. Criava milhões de galáxias e paraísos enquanto repousava sua cabeça naquele travesseiro. Morava sozinha, mas sempre dava "bom dia" ao acordar. E assim a vida seguia... Da forma que sempre fora, metodicamente planejada, e ainda com a esperança de algo novo que viria e deixaria as coisas mais bonitas e mais parecidas com aquele filme francês que a mocinha gostava. Sentia saudades da família, vez ou outra, nada gritante. Precisava de um espaço que só agora possuia. Mesmo complicado, aquele primeiro passo à independência era fundamental para que ela alcançasse o que almejava. Com o passar do tempo, começou a enxergar naquela nova cidade o seu lar. Já não era mais uma estranha, embora não tivesse amigos e todos os contatos que estabelecera com outros seres vivos tenham sido superficiais. Comprou um peixe beta para lhe fazer companhia. Era uma segunda-feira quando a menina vinha abraçada a "Mulheres", de Bukowski. Naquele dia foi diferente. Com sua cabeça baixa e seus passos rápidos, eis que misteriosamente a menina percebe um rapaz passar por ela. Seria só mais um no meio de tantos, caso este outro também não tivesse suas próprias peculiaridades. Tinha um jeito calmo que contrastava com sua aparência. Se o tivesse visto em alguma fotografia, a moça o imaginaria sorrindo, agitado e com olhos firmes, e não com aquele olhar vago e aquela boca pequena quase escondida pela barba. Ainda não fora isso que chamara sua atenção em especial, mas um caderno personalizado que o moço trazia consigo: capa preta, dividido no máximo em cinco matérias e escrito em letras grandes "Se Deus não existe, tudo é permitido?". Dostoiévski, Os irmãos Karamazov. Não havia duas semanas que a moça tinha lido o livro de qual a citação havia sido retirada. Checou no relógio, 15:12. Levantou e foi embora, envergonhada, completamente sem jeito, morrendo de medo de se fazer notada, pela primeira vez não cumpria com seus horários e uma adrenalina imensurável lhe tomava as veias. À noite, refletira se já o tinha visto alguma vez antes e tivera deixado passar despercebido, mas não, era a primeira vez, ela lembraria. O que, em partes, a desmotivava, já que não saberia onde lhe encontrar. Na terça-feira, lutando para se fazer aparentemente normal, a menina foi ao banco na esperança de reencontrá-lo. Ele estava lá mais uma vez. Desta, trazia consigo um exemplar de Ariel, da Sylvia Plath. Foi pega de surpresa quando viu o rapaz ultrapassar a área de clientes e tomar o lugar de um outro atendente. Ele trabalhava ali. Superado o choque, a menina continuava indo ao banco todos os dias, o rapaz sempre estava lá, inclusive foi atendida por ele algumas vezes. Seus olhares nunca se entrecruzaram, ele nunca ouviu da boca dela nada além de um "obrigada", mas para a moça havia uma amizade ali. Ela o tinha incluído na sua rotina. Ao chegar em casa, martirizava-se por nunca fazer as coisas diferentes. Ora, eles se viam todos os dias e os dois sempre carregavam livros consigo, livro é uma coisa tão íntima, tão pessoal... e os dois tinham uma preferência literária tão semelhante. O rapaz também carregava junto ao  livro aquele caderno, que ela viu na primeira vez. Então, decidiu-se: ela iria chegar abraçada a Os Irmãos Karamazov, colocaria "inocentemente" à vista dele, então ele iria falar que também gostava de Dostoiévski e os dois iam se tornar amigos de verdade e ela teria alguém pra falar como foi o dia e pra perguntar se queria tomar uma cerveja com ela no sábado à noite... Ah, como a menina sonhava. Inclusive, levou dentro da bolsa aquele exemplar inúmeras vezes, mas nunca teve coragem de botar seu plano em prática. Até que um dia, um mês e doze dias depois daquele primeiro, ela finalmente estava determinada a deixar claro que também gostou do livro, que também gostava de literatura e que os dois deveriam ser amigos. E ela foi. Colocou o livro na bancada. Ele viu. Pareceu não notar. Cumpriu seu trabalho, ela o agradeceu e foi embora. Um mês e doze dias de espera acabaram de ir pelo ralo. 
- Moça?
O sangue lhe fugiu às veias. Mas não era o garoto do caderno que a chamava, era o próximo a ser atendido na fila. Ele levantou o livro da menina, que ela havia esquecido em cima da bancada. Era muito branco, alto e tinha um sorriso tímido no rosto. Ficou deveras envergonhada, mas foi buscar.
- É um bom livro.
- Oi?
- É um bom livro. Gosto de literatura russa, não pude deixar de reparar. Sou Vitor.
- Marina.
A menina sorriu sem jeito, as coisas finalmente começaram a mudar.

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